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Ana Pérez-Quiroga
Eu também de tanto andar à roda fiquei tonta
Xosé M. Buxán Bran

Às vezes o ar dos museus pode chegar a ser excessivamente limpo, porque há muita atmosfera preservada, encapsulada e asséptica nos museus. Penso: a que cheiram os museus? A que cheiram as galerias e os centros da arte? Sem dúvida que têm muitos espaços incolores, inodoros e insípidos; aí estão esses volumes brancos e neutros, fechados, racionais, afastados de qualquer ruído visual, homogeneamente iluminados, com a humidade controlada... Ah! Parecem búnqueres onde neutralizar a realidade, onde obviar o sentido real das coisas, para construir outro mundo paralelo, distinto, mesmo impossível. Por isso, quando saímos de um museu temos a impressão de cruzar de novo a linha vermelha do real, como quando saímos da sala escura de um cinema. Ah! A realidade, tão contraditória, tão deleitosa e tão repugnante, tão salvífica e tão cruel. Mas essa é, de certo, a nossa contradição entre o espírito e a carne, entre a fé e a razão, entre os elevados e sábios pensamentos e as eventualidades e minudências da vida quotidiana.

E penso em tudo isso quando olho para a série de fotografias de Ana Pérez-Quiroga que ela intitula De tanto andar à roda fiquei tonta (2002), penso nessas duplas contradições e, em primeiro lugar, em termos de realidade e de imediato, vem-me à cabeça a imagem do prazer de respirar o ar puro, numa dança do corpo e do espírito entre o céu e o verde da erva; vejo-me a mim mesmo deitado aí ao sol, nas areias de uma praia qualquer, olhando para o céu com os olhos franzidos. De facto, essa é seguramente uma das imagens mais reconhecidas pela memória de muitos de nós ao observar esta peça de Pérez-Quiroga: sim, deitados sobre a toalha na areia ou passeando pela praia enquanto um avião faz cabriolas no ar anunciando com uma bandeirola algum produto, algum slogan. Seguramente que na génese consciente ou inconsciente desta peça está uma cativa Ana que erguia, entre feliz e admirada, os seus olhos voltados para o céu, escutando o ruído do bimotor e lendo e soletrando aquelas mensagens cifradas que se anunciavam lá no alto. Por isso, também eu mesmo e você seguramente também, vemo-nos representados nesta série fotográfica e voltamo-nos para a infância, para o lazer e a festa, para um céu azul e limpo, com uma roupa breve e fresca e um olhar terno, carinhoso, surpreendido e ingénuo, enquanto acariciamos com o olhar o mundo e os seus inventos.

Mas, que diz a legenda dessa banda que ondeia ao vento nestas oito fotografias da Ana Pérez-Quiroga? Paradoxalmente, não há discursos, nem slogans, nem promoções publicitárias. Só uma frase que parece privada, quase um pensamento epistolar, um lamento íntimo. É verdade que nos últimos tempos assistimos à presença nos espaços públicos de cartazes, inscrições ou bandeirolas que agora os casais ou os amigos dos casais costumam pôr quando, por exemplo, se casam ou que fazem os amigos nas despedidas dos noivos. Proclamações amorosas ou frases picantes e de alta voltagem sexual, ou pícaras, ou malévolas e divertidas para anunciar despedidas de solteiros ou bodas próximas. Seguramente também vocês as terão visto. Esta obra da artista poderia, pois, ser perfeitamente entendida nesse sentido, com grande exibição de meios neste caso, certamente, mas nesse registo. Há contudo uma coisa que faz estas fotografias de Pérez-Quiroga transcenderem essa moda. A chave está no texto escrito. Releiamo-lo devagar: De tanto andar à roda fiquei tonta. Não há anúncios afectivos nem informações em torno de casais e namorados. Não, aqui é a própria artista quem se define, quem se enuncia e expõe. Pérez-Quiroga informa-nos sobre algo lúdico e festivo, sobre um brincar vital, um jogo que a levou ao atordoamento, à tontura, ao torpor. Parece uma queixa que é ao mesmo tempo - e aí está outra reviravolta mais - um brinquedo perverso e feliz. O que está a ocorrer?


Por um lado, De tanto andar à roda fiquei tonta ou Odeio ser gorda, come-me por favor! falam de um eu artístico humilde, quase submisso e autonegado, que se oferece aos e às espectadores/as da obra. Por fim, o público é verdadeiramente o dono da situação, a autora nem escarnece deles, nem os ignora, nem se sobrepõe, pelo contrário: submete-se à vontade deles, assume-se neles no seu quotidiano, nas suas realidades vulgares e comezinhas. Senão, veja-se a sua peça Wallpaper (2001), um papel pintado para decorar o espaço com as evidências do real, com os objectos vulgares do nosso quotidiano doméstico; ou pense-se em Para que me calientes por la noche (2002), com essas chinelas em que parece personificar-se a autora para se encherem com os pés do espectador ou da espectadora, com o dono ou a dona dessas peças práticas e fúteis. Aí está essa imensa fileira de chinelas com frases e expressões para cada dia, para cada hora, criadas pela artista para aquecer os pés e o coração do amado ou amada. Observe-se também essa mancha de pratinhos de cerâmica de todas as tipologias e feituras, decorados pela artista com o seu corpo oferecido qual dádiva para ser o alimento da alma e do corpo, um gole de carne da artista para penetrar no corpo dos outros e das outras e mobilizar as suas gargantas, os seus esófagos, os seus estômagos, os seus intestinos... Aí está Tártaro (2002), com todas essas fotografias da acção que realizou a artista, convertida em mulher da limpeza, numa criada de uniforme a limpar com escovas de dentes o quarto de banho, o espaço mais interior, mais privado, mais íntimo, mais resguardado. Espaço para a higiene ou para a excreção, que está a ser purificado por uma artista submissa e generosa, aplicada e silente que limpa a tua sujidade, os restos dos teus cabelos, as escamas da tua pele, das tuas excrescências e o faz com amor e com diligência. E nessa mesma senda e do mesmo jeito há-de entender-se também De tanto andar..., onde a artista aluga um avião, encomenda o fabrico de uma bandeirola e sobre ela escreve uma frase singela, uma oferenda nua e comezinha de serviço supremo ao mundo e ao universo para avisar toda a gente da felicidade hedonista desse jogo embriagador e feiticeiro, dessa roda que labora louca e que na sua turbação se converte em nuvem e avião que reclama o teu olhar e o teu sorriso.

E nas brincadeiras no ar desse avião está-se a falar também de que tudo é andar à roda, o mundo, as políticas, a história (a grande e a pequena). Mas Pérez-Quiroga opta pela história cativa e singela, pelos breviários do quotidiano que, se noutras ocasiões entregara ao mofo de vitrinas e armários, agora saem cá para fora, arejando aos quatro ventos, gritando-se ao mundo. A artista diz-nos que ela não é perfeita, que ela é assim, que está tonta e feliz, que ela é débil e ligeira como o vento a balançar na tela da bandeirola, que ela é luz como a luz que penetra pelas fendas das letras.


Ah! Daquela surge a luz e então tudo muda em celeste e espiritual, numa atmosfera inapreensível e etérea, e a frase que se proclama a partir do ar torna-se uma ladainha e uma oração, um mantra cantado por uns dervixes que giram e giram, cheios de misticismo e de fé cega e tola. Uma frase nesse filactério oscilando no céu que, por uns momentos, é uma oração e um salmo, um cântico angélico de consumido e apaixonado amor terreno sob um céu azul e um rasto de pó.

Tradução do galego de Maria Ramos