O desejo – concluiu Espinosa num século que viu nascer a Filosofia e a Ciência Modernas – é a essência do Homem. Duzentos anos mais tarde, a dialéctica de Hegel acrescentou uma escólia a este axioma – o objecto –, explicando que o desejo do homem é de ser reconhecido pelo o Outro. Como não se trata apenas do Outro do diálogo, mas também do Outro sexo, Freud teve de introduzir na sua definição do desejo do falante a dualismo do sexo e da pulsão.
Se o sonho comanda a vida, o desejo de homens e mulheres nasce em cada caso da diferença entre a satisfação sonhada e a alcançada. O processo repete-se, pois nunca encontram a satisfação plena e completa.
É por permanecer insatisfeito que o desejo existe realmente. A sina do falante é, pois, de desejar o que está perdido por estrutura, logo, de ficar sujeito à memória e ao esquecimento.
A insatisfação fomenta fantasia, ilusão e castração, mas aquilo que se obtém são fragmentos, pedaços de real. É entre estes que encontramos os objectos da arte contemporânea.
Se Mário Perniola falou do século XX como o «século da estética», Thierry de Duve explicou que se a «arte» tomou esta importância na nossa modernidade, é porque se trata de um nome próprio que permite a qualquer um designar a coisa que escolheu como tal.
O acto artístico consiste no saber-fazer que constitui pela nomeação este tipo de objecto e o juízo estético que lhe corresponde. Foi deste modo que passámos do juízo estético clássico, do tipo «isto é belo», para o juízo estético contemporâneo, «isto é arte».
Os readymade de Marcel Duchamp são emblemáticos desta passagem. Trata-se de objectos já feitos (como um urinol), mas rebaptizados (no caso, «Fountain») e assinados pelo artista (sob o pseudónimo Mutt) que os propõe e exibe num espaço público para serem vistos como «arte».
«Isto é arte» não é um juízo atributivo do tipo «isto é um urinol». É um juízo de existência sem sentido (o Sinn de Frege), mas com referência (Bedeutung): o vazio da coisa que perdeu o seu usual conteúdo (a urina que aí se deposita) quando foi denominada «arte».
O que mudou em relação a Kant é que o belo já não é o objecto por excelência do juízo estético. De facto, a arte de hoje não só autoriza o feio e o horrível, como apela a afectos desagradáveis para o sujeito tais como o nojo e o ridículo, sentimentos que Kant pensava impossibilitarem os juízos sobre o belo e o sublime.
A psicanálise ensina mesmo que o objecto da arte contemporânea conduziu o juízo estético para além da harmonia das tensões instaurada pelo princípio de prazer, isto é, até à pulsão de morte.
O termo pulsão de morte indica que se trata de algo que está para além da lógica que rege a vida biológica e que é a vida das palavras e dos conceitos. Do ponto de vista histórico-social, a pulsão de morte está na base da invenção do novo e da criação, operações que passam pelo desaparecimento e a destruição do que já lá estava. Por fim, a pulsão de morte é vivida no corpo como um gozo paradoxal para a consciência de si, porque se encontra para além do prazer/desprazer que adapta o indivíduo ao mundo.
Este gozo pode ser ilustrado pela atracção/repulsão que sentimos pelos dejectos e as partes do corpo com erogeneidade e funções de alimentação, reprodução e excreção.
É porque estas parcelas seccionáveis e zonas erógenas inspiram delícia e asco, deleite e vergonha que simbolizam uma ambivalência mal vista pela estética clássica. Ora, é também esta dimensão que entrou na estética contemporânea, onde se pode chamar «arte» o que se considera «merda»
Ao observar o portfolio de Ana Pérez-Quiroga (1999-2004), fica a impressão que se instalou igualmente nesta artista contemporânea o desejo de mostrar peças soltas.
Por vezes, são objectos roubados aos seus donos e mais geralmente ao mundo da utilidade imediata. São também objectos renomeados pela artista, eventualmente integrados numa série e instalados como «arte».
É isso que vemos nos objectos furtados do Breviário do Quotidiano (1999-2002), composição de peças libertas de modo ilegal e algo violento da função que desempenhavam na vida de todos os dias.
Outra apropriação da artista é feita através da paródia de alguns dos símbolos da identidade nacional, como é o caso do Quinto Império e do recente Euro 2004.
Podemos dizer que aquilo que Ana Pérez-Quiroga mostra vem sempre no lugar de nada ou de ninguém. Isso que continua a faltar é por vezes remetido pela artista para a insegurança do semelhante (cf. os ultrapassados monitores da Sala de Segurança do Museu de Arte Moderna em Sintra; ou a multiplicação em 80 pares de chinelos do ser ausente que devia dizer o amor e aquecer a noite) e do próprio (vários auto-retratos entre os quais um integrando uma Natureza Morta).
A transformação lúdica dos lugares comuns está ainda presente na colagem de bonecos de plástico com que Ana Pérez-Quiroga constrói, em castelhano, o seu Jardim del Éden, desviando simultaneamente o sentido do velho tema religioso e artístico.