Uma citação. Este texto deveria começar com uma citação. Algo que nos dissesse qual a direcção a seguir, qual o ponto de vista, a melhor forma de olhar os mais recentes trabalhos da artista. É isso que se espera de um texto, que dê pistas, que nos retire dos ombros alguma da carga e do trabalho que é o olhar para uma obra de arte. Se essa citação fosse muito boa, não seria necessário escrever o texto. Este não passaria sempre de um parente pobre da citação, uma sub versão da mesma que em vez de nos guiar através do trabalho, guiar-nos-ia através das coisas maravilhosas que outro texto que não o nosso poderiam hipoteticamente enunciar sobre a obra. E isso, nós não queremos. Isso seria uma derrota, um assumir de que está tudo dito, mesmo o que foi dito antes do devir das coisas. Se a citação fosse má, coisa que é muito difícil fazer, não serviria o propósito de nos ajudar a desenrolar a meada de significados a que nos tentamos propor. Mas, pelo menos serviria para mostrar o quão bom era este texto. Por comparação. E isso seria assumir novamente uma derrota, e isso também não nos deixa muito satisfeitos.
Se eu pudesse citava aqui todos os poemas do Álvaro de Campos e em vez de se ouvir os ruídos das gruas do cais de Lisboa e o suor másculo dos estivadores, evocar-se-ia o ronronar das máquinas de costura. Em silêncio. E ao fundo o barulho do metropolitano, os sapatos nas escadas, quotidianos, sem que os olhos pousem por mais do que muito pouca atenção nas paredes e nos azulejos de Maria Keil.
Alguns factos. Convenientemente, este texto começava assim - para a exposição "Le mur, L'humour, L'amour", Ana Pérez-Quiroga (data de nascimento) apresenta um conjunto de trabalhos feitos em tecido onde desconstrói figuras geométricas fetiche do modernismo num jogo de cores lúdico sobre harmonias cromáticas, reduzindo ou ampliando padrões a um vazio de significados quase primitivos. Sobre tudo isto, uma figura uni-celular de amiba. Isto diria tudo e nada ao mesmo tempo. Seguir-se-ia uma lista de referências – os painéis de azulejos de Maria Keil, o trabalho da dupla Josef e Anni Albers, nomeadamente "Homages to the square" (dele) e as aventuras têxteis (dela) nos primórdios do modernismo e da Bauhaus, as telas de Portinari e as suas abstracções dos arraiais brasileiros até chegar aos padrões "triangularizados" dos papelinhos que enfeitam as ruas. E seria tudo muito optimista, como o progresso e o cheiro a festas de rua. Novamente as cores, o jogo e o decorativismo. E tudo seria simples, o que não acontece com o trabalho de Ana Pérez-Quiroga. A artista cita, sobrepõe, rouba, copia... Quando é que uma citação deixa de o ser e passa a ser parte do imaginário colectivo? Quando é que não precisamos de pôr aspas numa coisa e autoria numa nota de rodapé porque já ninguém e toda a gente sabe que ela existe?
Ana Pérez-Quiroga cita e cita-se melhor do que eu, sem pudor. Por mais citações que eu usasse neste texto... A artista leva-nos para um jogo de espelhos onde o cenário da exposição, um ateliê de design, reflecte um outro cenários de panos que cobrem as paredes. Onde os panos que cobrem as paredes reflectem um pensamento sobre o design e as artes decorativas. Onde a arte e o design nos fazem pensar em geometria, descritiva ou especulativa, em exercícios com formas puras. Quadrados e triângulos.
Image Tanger. Quando falámos sobre o trabalho agora inaugurado foi inevitável pensar num outro conjunto de panos de 2005 "Image Tanger" desenvolvido numa estadia em Tânger em torno das tapeçarias tradicionais marroquinas e realizados em colaboração com artesãos locais. A mesma obsessão com as cores e as formas, a mesma ligação ou perversão entre arte, artesanato, autor e artesão. Um outro país, onde o modernismo foi imposto pela colonização, a mesma miscigenação se é que a palavra "mesma" faz aqui algum sentido. Ana Pérez-Quiroga inventa histórias sobre os objectos e se não as entendermos, o mínimo que nos é pedido é que façamos o mesmo. Sem veracidade, essa invenção que nos faz demandar pelo impossível. Se a verdade factual existe, é um segredo muito bem guardado e enfadonho. Não nos interessa encontrar verdades, as do trabalho, as da artista, as minhas ou as do público.
Image é uma imagem é uma imagem... O aviso está dado.
A tua roupa. Se eu fizesse um filme, o primeiro plano seria um longo travelling sobre amontoados de roupas no chão. Todos os filmes deveriam começar assim. Depois panos e mantas e camas desfeitas. "A tua roupa ficava um espanto no chão da minha sala" foi a instalação que a artista apresentou na exposição "Shocking Pinks" organizada pelo Festival Queer Lisboa no Cinema São Jorge. Um néon sobre a porta da entrada que podia não ser visto, pela semelhança com os néons que habitualmente se encontram nas portas das entradas dos cinemas. Uma frase que evocava uma imagem, que fazia dessa imagem tão ou mais presente que as muitas imagens que temos dos filmes. E é esse poder de evocação, de memória, que também agora se encontra presente. Em "Le mur, L'humour, L'amour" a parede é outra, há humor e quanto ao amor há que descobri-lo. A artista apropria-se da nossa memória enquanto público e usa-a como mais uma ferramenta de trabalho.
Apague-se agora, por momentos, da memória a imagem da roupa no chão, mantenha-se a imagem do quarto de hotel. Foi em Madrid num quarto de hotel que esta história começou. Podia ter sido em Lisboa, Tânger ou Xanghai para citar (novamente citar…) algumas cidades onde a artista tem vivido e trabalhado. Ao ler o "Le Figaro" Ana Pérez-Quiroga deparou-se com o título de um artigo - "Le mur, L'humour, L'amour". Era sobre o quê? Pergunto-lhe eu. Não interessa, resposta. Guardou-o para si e agora partilha-o connosco. Podia ser uma onomatopeia, um ruído de máquina escrito a letras maiúsculas.