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Ana Pérez-Quiroga
Tratado das Pedras segundo APQ
Ana Pérez-Quiroga, 2007
A exposição, com o título Tratado das Pedras segundo APQ, (2007, técnica: tinta-da-china preta sobre impressão digital), inaugura uma nova orientação no meu percurso artístico.
Tratou-se de 11 trabalhos divididos em duas partes, uma composta por 7 obras que representam paisagens de alguma forma entendidas pela cultura ocidental, a outra formada por 4 obras que representam paisagens ao gosto da pintura oriental.
No primeiro grupo de obras, utilizaram-se pedras especiais, denominadas pietra paesina - pedra paisagem - originárias da região da Toscânia. Para as 4 obras restantes, utilizaram-se pedras com outra forma estrutural, denominadas wenshi - pedras de cultura ou pedras de sonho – originárias da província de Yunnan, na China.
Este projecto teve como ponto de partida efectuar uma abordagem à paisagem enquanto género da pintura. Em particular, criar um diálogo entre a representação da paisagem ocidental e a representação da paisagem oriental.
Estas pedras têm características comuns: de formação calcária, calcula-se que existem na natureza desde há sensivelmente 50 milhões de anos, no período Eoceno.
Devido ao efeito provocado pela lenta infiltração da água, através de fissuras, as pedras calcárias mais superficiais foram submetidas a transformações químicas, provocadas por soluções de óxido de ferro e de magnésio existentes na água, que foram deixando marcas avermelhadas ou verdosas.
Desde o período clássico que se conhecem estes calcários que depois de cortados e polidos permitiam reconhecer figurações. Mas é no Renascimento que a sua utilização artística se desenvolve. Com efeito, os pintores utilizaram as representações de paisagens que se identificavam nestas pedras para composições artísticas onde cabiam, por vezes, personagens que as habitavam.
A sedução por estas pedras criou um número apaixonado de coleccionadores famosos, desde os Medici, a Luís II da Baviera. Ao pintor flamengo Matieu Dubus (1590-1665), devem-se inúmeros trabalhos de excepcional qualidade, que foram comercializados por Philipp Hainhofer, através dos Kunstschranken (e que mais tarde darão origem as Wunderkammer), "cabinet" de curiosidades eles próprios com revestimento pétreo. Estes foram vendidos a Filipe II, ao duque de Poméranie, ao arquiduque Léopoldo da Áustria e ao rei da Suécia, Gustavo Adolfo.
É ao jesuíta Athanasius Kircher (1601/2-1680), e à sua compilação de numerosas fontes no livro "Monde Souterrain", de 1664, que devemos a difusão deste gosto na Europa.
Estas pedras apareceram na China por volta do séc. XVII, mas só dois séculos mais tarde conheceram uma larga divulgação graças ao escritor Ruan Yuan (1764-1849), que catalogou as suas pedras raras provenientes da província de Yunnan e da região de Dali. O seu catálogo foi posteriormente publicado em meados do séc. XIX, e acabou por popularizar junto de uma classe de coleccionadores estas pinturas saídas directamente da natureza.
Contrariamente às pinturas em papel ou em seda que só eram expostas em raras ocasiões para uma contemplação efémera, as pedras de sonho 梦石 - mengshi - ou pedras de cultura 文石 - wenshi (também se encontram muitas referências a pedras floridas - 花石 huashi) como são conhecidas na China, eram emolduradas e suspensas nas paredes.
As imperfeições da pedra, a repartição irregular das manchas e o carácter errático dos veios serpenteando a matéria, ou ainda os filões sombrios que a atravessam de um lado ao outro resultam como tinta-da-china no papel. As suas matizes evocam num instante a sobreposição das montanhas que se fundem progressivamente ao longe, o cume das montanhas com neve desaparecendo por baixo das nuvens, ou ainda os céus carregados de chuva.
Não só o jogo dos mármores, mas também a disposição das manchas e as "nuances" subtis das cores remetem para a grande tradição da paisagem monocromática pintada a tinta-da-china, que é a própria essência da pintura chinesa desde há um milénio.
Todas estas pedras parecem responder perfeitamente, nos desenhos que a natureza inscreveu, aos critérios estéticos da pintura chinesa clássica, mas todas respondem também à nossa estética contemporânea, tão sensível à abstracção.
Estas pedras possibilitam um campo de investigação fascinante onde surpreendentes possibilidades imagéticas se assemelham a uma "natureza" conhecida por nós e permitem, em simultâneo, recriá-la.
O projecto Tratado das Pedras segundo APQ, procura desenvolver esta ideia de natureza, na construção da escala e no posicionamento da paisagem. Para este efeito, as pedras foram fotografadas e ampliadas para um tamanho cinco vezes maior. Depois foi pintada a tinta-da-china preta, na própria fotografia, a silhueta de um ser humano e de um cão. Estas pedras passaram a estar habitadas por figuras humanas, criando uma possível narrativa, onde as paisagens sugerem uma viagem por mundos fantásticos.
Esta ideia será mais forte no caso das paisagens orientais. Foram escolhidos quatro conjuntos formados por seis pedras, montadas num suporte de madeira pintado de preto, com recortes em formas geométricas com bordaduras prateadas.
As figuras escolhidas - uma figura humana e um cão - estão sentadas ou deitadas no chão, de costas, às quais se juntou uma bandeira. Esta bandeira simboliza um voto, ou desejo, de peregrinação e ao mesmo tempo um apoio físico para esta viagem. Muito ao género das bandeiras que se deixam penduradas no Tibete.
As bandeiras, construídas com um pau de madeira de jacarandá, separadas por pequenos espaços, têm bordadas diversas palavras na frente e no verso do tecido, aos pares:
- Hù-shén, shikumen / bicicleta, tai-chi, yulan magnólia
- meticulosidade no detalhe / caligrafia, pintura, poesia
- yuyan, júng´an / 31º10'N, 121º21'E (localização de Shanghai).
Estas palavras bordadas não se vêem. Só se percepciona a sua silhueta, pintada a tinta-da-china como as figuras.
Nestas bandeiras há uma significação muito específica que reflecte a necessidade de construir um corpo mais sólido de pesquisa e aprofundamento deste trabalho.
Como já anteriormente referido, o oriente tem uma longa tradição na observação e estudo das pedras em toda a espécie de situações: desde as inscrições em montanhas e outros locais de culto (muitas vezes com o caractere fo, 'buda' escrito em tinta preta ou encarnada), passando pelas pedras mínimas ou pedras da sorte com caracteres auspiciosos (sobretudo fu felicidade ou shou longevidade), ou ainda as que se usam connosco, uma espécie de talismã.
No ocidente, a relação do homem com a natureza baseia-se na ideia de que o ser humano é o centro fulcral, isto é, o homem como a medida de todas as coisas. No oriente a relação homem/natureza é mais harmoniosa e equilibrada, o homem é apenas uma ínfima parcela da composição do cosmos. Assim, verifica-se que na pintura oriental as representações humanas aparecem numa proporção bastante mais pequena que nas representações ocidentais, na relação de "grão de areia" que o ser humano representa sobre a terra.
Se na representação da paisagem ocidental temos uma linha do horizonte, com um jogo de perspectiva, na representação oriental há uma ilusão da perspectiva dada pela inclusão de figuras humanas na paisagem.