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Ana Pérez-Quiroga
Notícias de Xangai
João Silvério, 2009
Este projecto que Ana Pérez-Quiroga apresenta no EMPTY CUBE encerra uma memória epistolar inscrita nos contactos que mantivemos durante a sua estadia em Xangai, em 2008. Foi sempre com uma enorme expectativa que recebi as suas notícias e as imagens transportadas por essa tecnologia comum, mas ainda assim mágica, que é a internet. Embora estas recordações que vos transmito sejam pessoais e apenas aqui figurem como um apontamento, sinalizam um desdobramento no trabalho da autora, que sempre incorporou memórias e evocações patentes em registos e escritos. Essas memórias são de diversos tipos, como os objectos que recolhe ou furta, pequenas histórias anotadas, que por vezes conta e mais tarde são integradas na sua produção, bilhetes, recibos e tudo o que estiver ao alcance. A sua relação com o mundo implica uma atitude imersiva e cúmplice com a vida quotidiana do lugar onde se encontra, seja em trânsito ou em permanência. A utilização da referência ou da evocação determina o seu grau de interesse por situações ou momentos que transporta para a sua obra, impregnada por uma forte componente auto-referencial e poética. E suspeitamos que Rimbaud paira sob a sua personagem, o seu ser-um-outro enquanto artista, em permanente deambulação etnográfica.
O desdobramento de que falo atrás apresenta-nos, neste projecto, uma outra face do trabalho de Pérez-Quiroga, que reúne com uma sagaz eficácia três instrumentos centrais no seu trabalho. A linguagem, a sua prática recolectora e o registo. Este último tem constituído um diário improvável, que a artista vai escrevendo com uma irregularidade permanente. É neste contexto que "O quase golpe da bicicleta" nos transporta para o domínio de uma possível ficção, no sentido em que a história pessoal, vivida pela artista, é representada através de um conjunto de imagens, um texto datado de um possível diário, um texto de parede e três objectos. As imagens assemelham-se a uma sequência cinematográfica que nos situa numa cidade oriental, Xangai, e são registadas pela câmara do seu iPhone. O uso deste aparelho é revelador da mobilidade que a artista desenvolve no seu trabalho de campo, transformando-o num dispositivo que articula a experiência exacerbada da grande metrópole com a necessidade voraz de captar e comunicar uma sucessão de momentos imprevistos.
Voltemos de novo atrás. A linguagem é a primeira ferramenta que Ana Pérez-Quiroga utiliza, sob uma ironia fina e despojada, construindo uma arquitectura disruptiva perante o aparente registo da experiência descrita no texto. A palavra “quase” pertencente ao título, subverte e previne-nos sobre o desfecho provável da narrativa, deslocando-nos para o centro da acção da artista que ultrapassa o mero relato de um acontecimento. Tal como a página do diário, pertencente a um momento da sua vivência, é de facto a única página escrita desse diário imaginado. Da mesma forma, as fotografias digitais (provas únicas) são impressas sobre papel de gramagem elevada (Papel Fabriano de 230 gr.), tradicionalmente usado para a prática do desenho ou da aguarela, constituindo-se como metáfora e apropriação de técnicas e meios conhecidos na história da representação. A artista usa uma estratégia operativa para trabalhar as suas vivências pessoais no espaço público e tece sobre a sua experiência quotidiana uma teia de relações entre a intimidade, o desejo e a experiência do outro como objecto e matéria do seu trabalho. Seja ainda através da revisitação de um objecto, accionada pela memória que este evoca, ou pela construção ficcional disseminada pelas imagens e pelo fio íntimo e textual do que poderia ser um improvável diário.