Ana Pérez-Quiroga
Cartografia de alguns conflitos e propostas
Pedro Lapa
Uma questão continuamente aberta e que se presta a equívocos, quando não mesmo a manipulações, reside na definição das várias gerações que se sucedem em ritmo crescente no panorama artístico português. Este fenómeno, que não é exclusivo e se estende a todo o mundo ‘Ocidental’, tem razões objectivas que radicam na democratização da vida nacional gerada pela revolução do 25 de Abril de 1974 e o consequente acesso por parte de amplas camadas da população ao ensino universitário. Assim a partir de inícios da década de 1990 a quantidade de artistas que se vão revelando complexifica a noção mais tradicional e linear de geração. Por um lado, o período de dez anos, normalmente definido para a afirmação de uma geração, é profusamente marcado pelo aparecimento de sucessivos grupos de artistas que ao reclamarem uma diferença relativamente aos seus próximos a fazem em termos diacrónicos, por outro lado, a diversidade de grupos dentro de cada ‘vaga’ é maior, ou seja, em termos sincrónicos o desdobramento de orientações artísticas registou uma maior diversificação, relativamente à década de 1980. Este fenómeno de ampliação das coordenadas de um determinado período histórico da arte portuguesa tem implicado um certo esbatimento das fronteiras geracionais e por vezes alguma crítica tem utilizado esta situação para contornar, senão mesmo recalcar, um processo que regista maiores continuidades a partir da geração que se revela no início da década de 1990. Artistas como Ângela Ferreira, João Tabarra, Miguel Palma, João Louro, Entertainment Co., Paulo Mendes, João Paulo Feliciano, Fernando José Pereira, Pedro Cabral Santo, Augusto Alves da Silva, Rui Serra, Cristina Mateus e Miguel Leal entre outros, deram início a práticas e questionamentos que, se criaram uma ruptura com a geração anterior, têm desenvolvimentos mais continuados nos sucessivos grupos que posteriormente foram aparecendo no panorama artístico. Muitos deles participaram conjuntamente em exposições como Greenhouse display (1996), Jetlag (1996), Zapping ecstasy (1996), X-rated (1997), O império contra-ataca (1998), (A)casos (&)materiais (1998,1999), Plano XXI (2000), Urban Lab – Bienal da Maia (2001) entre outras, geralmente comissariadas por Paulo Mendes ou Pedro Cabral Santo, que mais do que qualquer outra instância possibilitaram a continuada actividade destes artistas e abriram portas a outros, de gerações mais jovens que se foram revelando sucessivamente nestas exposições. A omissão que algumas instituições e, sobretudo, alguma crítica jornalística moveram a este conjunto de artistas foi e é elucidativa das limitações de grande parte do seu discurso e consequentemente da assimetria que se aprofundou entre os produtores e o domínio da recepção escrita, que insiste em paradigmas eclécticos para mitigar a ausência de uma visão integrada e crítica. Ora na sua versão ideologicamente colonizada por um neo-liberalismo, ora reactiva e manifestada em artigos sobre a exposição, que pela primeira vez reuniu alguns dos referidos nomes numa institituição – a Fundação de Serralves – sob o nome de Imagens para os anos 90 (1993) comissariada por Fernando Pernes e Miguel Von Haffe Perez, foi explícita nos seus títulos: Que há de novo?, Não há novos[1]. No que respeita a situações de representação nacional em bienais, estes artistas têm sido quase sempre preteridos mesmo quando os contextos internacionais lhes seriam favoráveis. De resto alguns deles viram os seus trabalhos entrarem inicialmente em museus e colecções internacionais.
A animosidade que persegue esta geração, que se revelou no início da década de 90, deverá ser entendida em função da ruptura instaurada pelas suas práticas artísticas relativamente às gerações anteriores empenhadas num retorno à pintura de cariz neo-expressionista e, de um modo mais geral, na procura de um subjectivismo de ascendência romântica. Uma consciência atenta aos novos materiais e suportes, bem como ao valor ideológico intrínseco aos seus usos, promoveram uma prática crítica de desconstrução de situações comunicacionais ou estruturantes da ideologia neo-liberal dominante a par da resistência à absorção cultural-mercantil que as vias do formalismo modernista suscitaram. É então entre estas gerações e no contexto do início da década de 90, que fará sentido falar de ruptura. Importa contudo não esquecer que o trabalho de alguns artistas revelados em 80’s, como Júlia Ventura, António Olaio ou Ana Jotta, se podem considerar, pela tematização de alguns dos referidos aspectos, no paradigma desta geração, que poderia ainda recuar aos anos 70 de Ernesto de Sousa, Helena Almeida, Alberto Carneiro ou Julião Sarmento. Outros artistas, como Miguel Ângelo Rocha, Sebastião Resende ou Pedro Sousa Vieira, também eles revelados nestes anos 90, estruturaram o seu trabalho na rearticulação de questões relativas à expressão ou à subjectividade das práticas anteriores.
Esta marginalização terá de ser pensada também como um processo de recalcamento das práticas críticas em favor de um eclectismo capaz de assegurar a sobrevivência de um subjectivismo baseado na manutenção dos géneros artísticos tradicionais, como se estes fossem dotados de uma essencialidade transhistórica. Num texto sem título, tão sintético e reflexivo quanto esclarecedor sobre este entendimento consensual e dominante das práticas artísticas em Portugal, Manuel Castro Caldas afirma que:
“na arte portuguesa recente, (existe) uma atitude de crítica da Forma (...). Atitude de resistência, esta concepção do trabalho de criação plástica pressupõe uma visão da Forma como modo de viver culturalmente, civilizacionalmente, o visível. Neste sentido, a Forma é Ordem, poder e construção, violência e domínio. Esta violência, conhecem-na os artistas, para quem o que chamamos vocação (e depois ciclicamente “inspiração”) consiste na dupla experiência dessa violência do sentido e do trabalho de exorcismo que ela impõe.
Se a arte “liberta”, ela liberta (d)a Forma, encontrando no visível – na imagem de um dado horizonte de visibilidade – os elementos e procedimentos que ela vai contaminar com des-razão, com o vírus do a-significante.”[2]
Uma consciência crítica relativa ao essencialismo formal do modernismo é afirmada, por isso toda a reflexão se centra na questão formal denegada. Se o domínio estético é considerado o âmbito da reflexão sobre a forma, entendida na sua dimensão antropológica, a análise dos seus mecanismos de configuração deixa de fora o artista, preservado na sua vocação, como figura transhistórica que magicamente liberta, como se estivesse incólume a esses mesmos poderes que exercem o seu domínio e ordem sobre a construção da forma, entendida de um ponto de vista modernista no seu domínio estritamente visual. A consideração de uma prática centrada na pura negatividade da forma tinha necessariamente que ser implicada num lugar de forças onde se joga a sua produção – a técnica e o sistema da cultura, sob pena de se reduzir a crítica ao formalismo modernista a uma normativa puramente interna e estrutural dos procedimentos de significação. O gesto artístico circunscrito à produção estritamente a-significante enquanto refutação da forma, sem que um outro espaço de tensões – porventura mais amplo – seja considerado na sua implícita miscigenação categorial, apenas reinscreve a clausura onde a categoria do estético a encerra sob condições históricas não problematizadas. Para estes novos artistas uma reflexão sobre o lugar produtor do sistema da cultura teria de ser implicada. “A experiência devastadora que desarticula e esvazia no planeta inteiro instituições e crenças (…) para nos propor formas definitivamente anuladas”, descrita por Giorgio Agamben e citada por Brito, Louro, Mendes, Palma, Tabarra e Vidal em Golpe de Estado. Documento para um realismo activo [3], trouxe para os artistas de 90’s a emergência do questionamento sobre a sua prática e respectiva situação nas relações de produção da época. O descentramento que uma condição histórica promove implica negociações, tradução e apropriação. Neste sentido, as categorias de artista, público e processos de produção artística sofreram uma revisão profunda capaz de promover uma crítica substancial às suas relações.
Outro aspecto curioso relativamente às considerações de Manuel Castro Caldas residirá no facto do seu discurso se centrar sobre categorias circunscritas a um entendimento fenomenológico como sejam a Forma e a sua negação, extensíveis a uma antropologia cultural, mas talvez mais produtivas noutros tempos históricos, anteriores à crítica desenvolvida pela nova etnografia. O que esse discurso omitia, voluntariamente ou não, era a herança das questões trazidas pelo conceptualismo que deslocaram a problematização modernista centrada na autodefinição do medium para o campo mais genérico da arte, diluindo assim a consideração de categorias como a forma e instalando a noção de arte no centro das suas pesquisas. Tal facto para muitos artistas deu continuidade à demanda ontológica do modernismo relativa à definição da essência da arte e já não de um medium específico ou da forma. O resultado foi ambíguo, como o demonstrou Rosalind Krauss: “Conceptual art saw itself securing a higher purity of Art, so that in flowing through the channels of commodity distribution it would not only adopt any form it needed but would, by a kind of homeopathic defense, escape the effects of the market itself”[4]. Passado o conceptualismo e a sua crítica nomeadamente a de Marcel Broodthaers e do seu Musée des aigles, Krauss afirma que este: “Having explained (...) that for him there was what he called an ‘identity of the eagle as idea and of art as idea’, Broodthaers’s eagle functioned more often than not as an emblem for Conceptual art. And in this cover then, the triumph of the eagle announces not the end of Art but the termination of the individual arts as medium-specific; and it does so by enacting the form that this loss of specificity will now take”[5].
A ausência de referências aos debates que envolveram o conceptualismo e a sua ultrapassagem crítica, a par da vontade de os ignorar retomando problemáticas anacrónicas para o contexto português e que caracterizou a reacção de muitos outros discursos críticos de inícios de 80’s não poderia compreender as reivindicações de uma nova geração, que necessariamente se articulavam com alguma informação, ainda que escassa, sobre as práticas conceptuais e a crítica institucional que marcaram a década de 1970’s.
É no quadro de uma assumida posterioridade relativamente a estas problemáticas que desmaterializaram o objecto artístico e destituíram a ideia de medium específico que o trabalho desses artistas de 90 se afirma numa condição pós-media. Assim a ruptura entre estas concepções muito distintas relativamente ao trabalho artístico gerou um diferendo que se manifestou com as já referidas animosidades entre estas duas gerações. No entanto os meados da década de 90 assistem ao aparecimento de outros conjuntos de artistas, que partilhando basicamente os pontos vista referidos vão organizar as suas experiências dentro do âmbito de uma cultura pop, operando preferencialmente com suportes e media como o vídeo e o design.
Pedro Cabral Santo, Alexandre Estrela e Miguel Soares, que haviam organizado e participado em inúmeras exposições desde o início da década[6], com outros artistas já referidos, em 1995, época de finalização das suas formações académicas, iniciam uma colaboração mais intensa com Rui Toscano, Carlos Roque e Rui Valério, que então se revelavam, dando continuidade, desenvolvimento e especificidade a algumas das questões que desde 90’s haviam alterado profundamente o panorama artístico português. Todavia existem diferenças de sensibilidade e de preocupações que se manifestam nestes dois grupos, particularmente no que respeita a uma atenção política e social, por vezes ilustrativa, de tendência como diria Walter Benjamin, que alguns trabalhos anteriores apresentavam. No extremo oposto a essa ordem de questões um outro grupo constituído por Francisco Tropa, Noé Sendas ou Rui Calçada Bastos, entre outros, recusou uma problematização da análise das condições de produção para centrar os seus trabalhos num subjectivismo mais emotivo ou no non-sense. Recorrendo à apropriação de suportes fílmicos, a situações performativas trazendo o discurso sobre o corpo para o primeiro plano ou criando dispositivos absurdos onde a nostalgia de um humor dadaísta se manifesta, uma continuidade com algumas questões de outras gerações está patente.
Mas um aspecto comum a todos estes artistas, que ultrapassa estas divergências, reside na generalizada indiferenciação a que a especificidade dos media com que trabalham são submetidos, quando não mesmo sobrepostos e cruzados uns com os outros. A circunscrição do trabalho artístico ao âmbito estritamente disciplinar de um determinado género, e consequentemente desenvolvida em torno da especificidade do medium, foi ultrapassada na sequência das questões suscitadas pela consideração da arte enquanto objecto de reflexão, promovidas pelo conceptualismo. Só que a procura da essencialidade da noção de arte, que alimentou o conceptualismo, foi profundamente abalada pela crítica à autonomia do objecto artístico. As práticas da Process art, Body art, Land art e site-specific deslocaram o objecto artístico para o quadro de um processo interactivo com as suas condições de produção e, embora o desenvolvimento histórico destas questões não tenha tido reflexos muito directos nos desenvolvimentos da cena artística portuguesa, o facto é que esta não foi, como de resto sempre aconteceu, a referência histórica para estas novas gerações. Elas encontraram no quadro de uma divulgação cultural mais alargada uma complexidade discursiva mais significativa para as suas questões. Este facto caracterizou a continuidade e sobreposição de movimentos e gerações no decurso do século XX português.
Alguns veriam nas práticas destes novos artistas a ameaça de diluição do objecto artístico e mais um fim da arte. Na realidade a ingenuidade deste temor partilhado pela crítica conservadora e tomado no sentido literal da expressão, nunca sucedeu senão como inovação conceptual e significado histórico dos media.
Outro dos aspectos que me parece transversal e partilhado pelas práticas de todos estes grupos de artistas é o da relevância que a imagem em movimento assume. A crescente generalização do vídeo enquanto medium recorrente explica este interesse pela temporalidade da imagem. Notória é uma consciência de que o cinema no decurso de um século havia obrigado a reconsiderar profundamente as tradicionais categorias da imagem. A imagem-tempo, teorizada por Gilles Deleuze, propunha uma profunda reconsideração das categorias constitutivas da imagem agora tecnicamente produzida no âmbito de um quadro historico-epistemológico diferente. A dimensão temporal revelava a imagem como um compósito visual, auditivo expandido e produtor de um acontecimento, pressupondo uma radical alteração dos conceitos de representação.
Será no quadro desse entendimento e das possibilidades que a generalização do acesso ao vídeo trouxe que o trabalho de muitos destes artistas se situa. Naturalmente o seu ponto de partida não é já o de anteriores gerações que descobriram e inventaram as primeiras possibilidades do (e para o) próprio medium. A profusão exponencial que este medium teve nos usos quotidianos mais diversificados constituiu uma panóplia de géneros com as suas convenções que serão tomados nos seus trabalhos como agregados constitutivos do próprio medium e sobre os quais exercem as suas interrogações. Sejam pequenas narrativas ficcionais e anedóticas, jogos vídeo, circuitos de vigilância, manipulação e montagem de sequências apropriadas de soap operas e outros programas televisivos ou situações performativas características do entretenimento, todas elas constituem as infinitas configurações deste medium. No sentido em que o medium produziu uma concepção de si mesmo híbrida e autodiferida, esta generalizou-se à noção de medium em geral. Daí a indiferenciação de materiais e suportes com que também muitos destes artistas têm trabalhado, sobretudo no início das suas carreiras quando o acesso ao vídeo não estava ainda tão generalizado. Concomitante com estas questões é a tipologia de materiais e objectos com que constróem as suas esculturas e instalações. No caso de Rui Toscano, entre outros, é frequente o recurso a objectos de uso conotados com uma cultura pop, como sejam os rádio-tijolos, puffs, modelos de ecrãs vídeo, tipologias de registos musicais, objectos de design ficcionados, expandindo assim as primeiras experiências de João Paulo Feliciano.
Se a integração de aspectos do design, que em tempos diferentes promoveram atitudes e comportamentos quotidianos alternativos relativamente às normas burguesas e se inscreveram assim como uma política para o quotidiano do projecto moderno, a sua desejada massificação só aconteceu parcialmente e outros mecanismos, que importa analisar, sobrevieram. O que a generalização do design associada à segunda Revolução Industrial trouxe foi uma expansão do sistema do valor de troca à totalidade dos signos, formas e objectos em nome do design, como o revelou Jean Baudrillard há muito tempo. Hal Foster reflectindo sobre esta questão afirma que: “according to Baudrillard, the Bauhaus signaled a qualitative leap from a political economy of the product to a “political economy of the sign”, in which the structures of the commodity and the sign refashioned one another, so that the two could circulate as one, as image-products with “sign exchange value”, as they do in our own time”[7]. Importa referir que não é o projecto da Bauhaus que está em causa, nem sequer a sua prática. O que está em análise é a sua herança assumida num contexto político-económico tardocapitalista, que actua integrando tudo e pervertendo o seu programa. Este processo associado ao objecto artístico vem reiterar o carácter fetichista de mercadoria que o sistema capitalista atribui a todos os signos, formas e objectos, promovendo uma homogeneização onde tudo se equivale pela marca, sendo que esta quanto mais se autonomiza do produto mais possibilidades tem de promover o desejo de consumo.
Colocados nesta esfera os objectos artísticos que pretendem ficcionar ou subverter o design, mais não são do que um pálido desejo reabsorvido por um sistema globalizador de um mercado de trocas, que encontrou na sedução da imagem promovida pelo design parte dos seus mecanismos ideológicos. Estes passam por uma desmaterialização do objecto artístico e uma representação de experiências sensoriais que se substituem à sua vivência, como o referiu Guy Debord a propósito da exteriorização em imagem-espectáculo promovida pelas condições de produção, em 1966[8] e apenas mais complexificadas em 2003.
Como resposta e desenvolvimento crítico a esta tensão entre o objecto artístico tomado na sua relação com o sistema de uma economia do espectáculo, que o dissipa, e a sua necessária rematerialização num medium construído num quadro tecnológico do presente, dominado por modelos de representação de um sistema ideológico, parecem-me especialmente significativas três linhas de trabalho. São elas centradas na questão do corpo em deslocação e o habitar dos lugares; na desconstrução das condições de representação, que acompanha a rematerialização do objecto artístico num medium; ou a produção do conflito de representações no acontecer da imagem.
Redefinir o objecto na sua materialidade articulada com o corpo, como resposta à privação da experiência promovida pela economia do espectáculo, tem sido determinante no trabalho de Didier Fiúza Faustino, que para além dos seus projectos arquitectónicos, muitas vezes se desenvolve num território híbrido entre a arquitectura e as artes visuais. Esta sobreposição permite-lhe interrogar os limites da arquitectura, as pressões conceptuais que a enformam, questionar sistematicamente o cliente e considerar a mobilidade do corpo e o deslocamento. As paredes das arquitecturas e maquetas de Didier Faustino são construídas como membranas porosas supondo assim uma reinterpretação da noção de fronteira enquanto zona de contaminação e passagem. Como o artista afirma “para viver nesta época de novos media e novas redes de comunicações é preciso reclamar a sua consciência do mundo físico (...) que tende a apagar-se sob o efeito da velocidade e do excesso de informação”[9]. A arquitectura é então entendida no seu habitar mais físico e orgânico, como uma pele vestida pelo corpo e que define relações projectivas e interpretativas entre os sujeitos de uma comunidade dentro de um determinado quadro de poder. Corpo em Trânsito 1.0, 2000, consiste num contentor destinado a proteger um corpo das agressões que as fronteiras e a burocracia exercem relativamente à emigração clandestina e suas condições sub-humanas, materializando criticamente num objecto arquitectónico o destino da produção da própria disciplina da arquitectura ou design. O trabalho Love Me Tender Prototype, 2000, constituído por uma estrutura tubular em aço cromado de movimentos sensuais e pés afiados como picadores de gelo acente sobre placas de espelho, funciona como um catalisador que concentra criticamente as projecções com que as estratégias de fetichização da mercadoria actuam. A relação sado-masoquista que trava com o corpo do sujeito que utiliza este objecto é alegórica do papel do design no mundo contemporâneo.
A desconstrução das condições de representação, que acompanha a rematerialização do objecto artístico num medium situa-se o trabalho de Alexandre Estrela ainda que alguns dos seus objectos, como Mass Production Pool for Workers, 2000, se possam aproximar da atitude anterior. Pela complexidade e amplitude do projecto merece um especial destaque. Estrela tem desenvolvido um trabalho de pesquisa sobre os limites dos media com que trabalha – geralmente o vídeo – de modo a questionar as convenções que organizam e estruturam os seus usos. Ao construir ou apropriar situações marginais, por vezes quase imperceptíveis, desconsideradas pela vida quotidiana ou pela história do próprio medium, a interrogação a que as submete implica-as numa utopia capaz de refigurar novas possibilidades para o vídeo. Seja a projecção da imagem de uma camcorder com um espelho convexo sobreposto à objectiva, devolvendo a imagem de quem a observa integrada na lente da câmara, enquanto num canto do ecrã se inscreve em tempo real a hora exacta em que o espectador presencia a imagem, embora não se trate de uma câmara de vigilância mas de um vulgar registo vídeo que utiliza uma tecnologia que apresenta o passado no presente, em Câmara de 1995; o registo vídeo dos momentos terminais de um televisor cuja imagem se concentra num ponto de luz no centro do ecrã para explodir como uma supernova no horizonte, enquanto uma voz diz ...a star, I’m making a star, em Making a star de 1996; a supressão da nota sol de uma música dos l@n a par de uma projecção vídeo de imagens simuladas de um sol que se apagam sincronizadas com as ausências da referida nota, em S/ Sol de 1999; estes como muitos outros dos seus trabalhos constituem exemplos significativos de uma estratégia de exploração da especificidade diferencial do medium. É então na margem ou, se se quiser, nos limites deste que o seu trabalho se situa.
A questão deixada em aberto pelo fim do modernismo e pelo campo alargado da arte relativamente ao papel do medium na produção dos processos de significação oferecia uma outra ordem de análise. Se a auto-referencialidade moderna se centrou na problematização das propriedades físicas do medium, devolvendo a questão da presença a si mesma, o mito de uma interioridade pura assim gerada teria de ser posto em causa. Conforme o marxismo, a psicanálise e depois o pensamento pós-estruturalista reiteradamente o demonstraram a interioridade pura foi sempre uma ficção produzida por algo exterior que é introjectado e recalcado como tal. A noção de identidade do medium forjada a partir das suas propriedades físicas não foi mais do que uma metáfora entre outras possíveis. Para isso a própria identidade do medium deverá ser entendida como diferença constitutiva e uma reconsideração das margens de possibilidades excluídas ou reprimidas abre-se na procura e deriva de novas metáforas para o medium, libertas da clausura metafísica do modernismo[10].
De facto a situação presente não é já a de uma crítica ao formalismo modernista capaz de produzir novos conceitos para uma prática pós-moderna de natureza crítica. Provavelmente será o rasto dessa dimensão centrada numa revisão categorial, ainda que as suas implicações se manifestem de forma narrativa. Por isso não se trata de defender nas práticas artísticas actuais uma ausência crítica ou rasura teórica mesclada com um eclectismo mais ou menos hábil e apreciado por alguma crítica. É natural que um trabalho de reelaboração de algumas questões que nestas últimas décadas foram objecto de diversas abordagens possam povoar determinadas áreas das práticas artísticas actuais, ainda que não exista qualquer pretensão historicista. A construção de alguns segmentos narrativos sem finalidades totalizadoras organiza agora uma interacção mais continuada entre a arte e os sistemas culturais. O recurso à apropriação, sobreposição, produção e pós-produção de géneros e técnicas dominantes dos media mais recorrentes e estruturantes do sistema de cultura ‘ocidental’ por parte dos trabalhos dos artistas não tem levado a uma extinção do objecto artístico na indiferenciação promovida pela homogeneização do tardocapitalismo, mas tem potenciado a possibilidade do objecto artístico confrontar os sistemas simbólicos. Para Pierre Bourdieu[11] só na medida em que se compreende como o sistema simbólico está estruturado pela lógica e função gnoseológica de interesses dominantes e é estruturante pelo poder que exerce é que os sistemas simbólicos cumprem a sua “função política” de instrumentos de imposição ou de legitimação da dominação. Caso contrário cair-se-ia na falácia interaccionista que reduz as relações de força a relações de comunicação. No entanto é também da noção de uma determinação absoluta dos sistemas que forjam a “função política” da imagem que estes artistas actuais se afastam. Se para os de outra geração o détournement situacionista permitia reconhecer na imagem a violência das suas relações de força e produzir efeito realmente crítico capaz de subverter o poder de imposição simbólico, existirá actualmente um cepticismo maior relativamente à linearidade das relações dos sujeitos com a “função política” dos sistemas simbólicos.
Segundo James Clifford os conceitos etnográficos de localização e receptividade na sua mistura não estão nunca determinados em absoluto, ainda que se situem num campo de jogos de forças e poderes constrangedores. É assim na sua consequente deslocação e tradução que a prática artística expandida ao quotidiano produz a imagem como um acontecer numa complexa intersecção de histórias que suscita um conflito de representações. A imagem narrativa torna-se pois a hibridez dos restos impensados que a organizaram.
Preocupados com a produção do conflito de representações no acontecer da imagem, João Onofre, Francisco Queirós, João Pedro Vale, Vasco Araújo, Filipa César, Nuno Cera, Pedro Gomes, entre outros que se revelaram no final da década de 1990’s[12], parecem-me desenvolver as suas obras no âmbito destes parâmetros. Importa referir que João Tabarra, vindo de outra geração, tem realizado desde meados dessa década um trabalho susceptível de ser integrado neste entendimento.
Os vídeos de Onofre trabalham a acção inerente à imagem como acontecimento. A dimensão perfomativa a que submete os actores produz rupturas e margens impensadas entre a proposição que organiza um modelo de representação e o seu desempenho. Os seus vídeos manifestam essa tensão que é a de uma resistência à transparência da imagem relativamente à proposição, que pretensamente lhe atribui uma ordem. A tradução e mesmo transliteração que a performance executa desloca-a para outras ordens de representação que produzem processos de significação diversos, quando não mesmo contraditórios. A imagem revela uma teia de tensões tão significativas quanto imprevistas. Um grupo de jovens modelos num casting a declamar a frase que Ingrid Bergman no papel de Karen do filme Stromboli de Rosselini, enuncia à beira do desespero, como dúvida maior sobre o voluntarismo da acção humana, pode ser esvaziado por uma performance reveladora da sua impossibilidade contemporânea e com isso provocar inesperadamente o riso. Em Instrumental Version, 2001, o vídeo de um coro universitário a cantar a transcrição de uma música electrónica dos Kraftwerk – The Robots –, revela ritmos e modulações mais próximas da voz do que seria de esperar numa música electrónica e, por outro lado, o coro universitário de aspecto tão deslocado do contexto da música contemporânea, em que é colocado, regista um comportamento subitamente semelhante aos robots que dão título à música. A sobreposição de códigos culturais e de contextos e localizações tão diferentes, mas não indiferenciados, gera uma imagem complexa de significações e resistente à dominância de uma proposição ou ideologia. No seu desajuste revelam-se as margens impensadas capazes de descentrar o domínio de qualquer ordem de representação. Untitled (Vulture in the studio), 2002, traz para o lugar de produção do próprio trabalho artístico o elemento não axiomatizável e estranho – um abutre. A sua referência histórica e cultural desperta o símbolo, agora pousado e caminhando ruidosamente pelo atelier do artista. O vídeo que o mostra devolve-nos uma imagem real, demasiado real, anterior a qualquer ordem simbólica. É o próprio real, incondicionado e a-cêntrico, que esta poderosa imagem nos traz devolvendo uma tangibilidade da imagem à fricção com o real, redimindo-a das suas construções ideológicas, ou seja, da realidade.
Esta sobreposição de códigos e modelos de representação que constitui o horizonte cultural da imagem e cuja estrutura interna é a do tempo expandido e do contínuo diferir de si mesmo, responde criticamente ao problema da imagem enquanto forma primeira da mercadoria na economia do espectáculo e respectiva função na estetização difusa das sociedades contemporâneas ‘ocidentais’. Tal como aconteceu com o design, o risco da própria arte se subsumir neste sistema e não se distinguir existe, como o apontou Hal Foster[13], mas o trabalho artístico pode constituir-se como uma provocação à mediocridade da experiência proporcionada pela própria economia do espectáculo. José Luis Brea ao analisar o papel do vídeo e da net.art. no seu livro La era postmedia[14] levanta várias questões pertinentes para esclarecer alguns equívocos. Para ele os procedimentos críticos que enformam os trabalhos de alguns artistas contemporâneos constituem uma crítica logocêntrica das estruturas de representação e sua estabilidade numa economia de produção de significância e consequentemente rejeitam a pretensão de uma multiplicação ao infinito de interpretações e entendimentos do próprio objecto artístico, que no limite desvincula qualquer possibilidade crítica. Para alguma crítica este aspecto tende a ser visto como uma “afirmación falsamente ‘pluralista’ ségun la cual, y en el marco de una presunta ‘estética débil’, ‘todo vale’. Esse ‘todo vale’, que defiende un inocuo y débil pluralismo – fácilmente convertido en coartada del nuevo liberalismo –, ignora como poco que hay una cierta perspectiva que en arte, cuando menos, ‘vale más’. Aquélla que es capaz de reconocer en él una última máquina de guerra , la instancia máximamente crítica frente a um mundo organizado desde las presuposiciones de estabilidad de la economía de la representatión”[15]. Não posso deixar de pensar que este é talvez o desafio mais significativo para as práticas artísticas contemporâneas que assumiram a questão da técnica e suas implicações no actual sistema da cultura. Se a técnica traz as possibilidades do presente, importa estabelecer rearticulações que a liberte do confinamento que lhe é atribuído pelas metáforas de uma economia do espectáculo.
[1] Cf Expresso, 14/8/93 e 7/8/93 respectivamente.
[2] Manuel Castro Caldas, sem título in Arte Contemporânea Portuguesa na colecção da Fundação Luso-Americana para o Desenvolvimento. Centro de Arte Moderna da Fundação Calouste Gulbenkian. Lisboa, 1992, s/nºp.
[3] Fernando Brito, João Louro, Paulo Mendes, Miguel Palma, Carlos Vidal, Golpe de Estado – Documento para um realismo activo, comunicação apresentada no Encontro da Cultura Contemporânea e das Causas, Cascais, 26 e 27 de Março de 1994 e publicado em Espectáculo, Disseminação, Deriva, Exílio: um projecto em torno de Guy Debord. Beja, Galeria dos Escudeiros, 1995, p. 79.
[4] Rosalind Krauss, A Voyage on the North Sea. Art in the Age of Post-Medium Condition. Londres, Thames & Hudson, 2000, p, 11.
[5] Idem, p. 12.
[6] Exposições como Faltam 9 para 2000, 1991; Arstrike I, 1991; O que é nacional é bom, 1993; Independent worm saloon, 1994 reuniram Pedro Cabral Santo, Alexandre Estrela e Miguel Soares, com Paulo Mendes, Rui Serra e outros artistas mais associados à exposição Imagens para os anos 90, 1993.
[7] Hal Foster, Design and Crime and other diatribes. London, New York, Verso, 2002, p.18.
[8] O famoso livro de Guy Debord, La Sociétè du Spectacle é de 1966.
[9] Charles-Arthur Boyer, Didier Faustino architecte borderline in Art Press, nº245, Abril 1999, p.52.
[10] Sobre esta questão comissariei uma exposição em 2001 intitulada Espelho Negativo, Fundação Ciência e Desenvolvimento – Teatro do Campo Alegre, Porto. No ensaio publicado no respectivo catálogo tive oportunidade de reflectir mais desenvolvidamente sobre estas questões.
[11] Cf. Pierre Bourdieu, O Poder Simbólico, Lisboa, Difel, 1989.
[12] Sobre um grupo de 9 artistas desta geração (João Onofre, João Pedro Vale, Francisco Queirós, Leonor Antunes, Filipa César, Ana Pinto, Nuno Sacramento, Inês Pais, Ana Perez-Quiroga) mais 1 da anterior (Rui Toscano) comissariei uma exposição intitulada Disseminações, Culturgest, Lisboa, 2001. Para uma apreciação mais geral relativa à diversidade de posições e de proximidades, cf. o meu ensaio publicado no catálogo intitulado Disseminações.
[13] Op. cit. p. 125.
[14] José Luis Brea, La era postmedia. Salamanca, Consórcio Salamanca 2002.
[15] Idem, p. 159.