“os poetas fortes fazem a história lendo-se mal uns aos outros, de modo a desobstruir um espaço de imaginação para si próprios.”
Harold Bloom
Criar.
Somos seres
ex-cêntricos. É a nossa comum condição
pathológica: ser em estado de abertura. Esta deiscência radical é o fundamento da afectividade humana: permite a nossa relação com os outros e com o mundo. Mesmo procurando incessantemente a autonomia e liberdade, lutando contra toda a dependência, existir é ser afectado, consciente ou inconscientemente. E essa faculdade de sofrer a influência do que está fora do centro que somos, traduz-se em vulnerabilidade.
Aqui enraízados, compreendemos que não há criação sem influência. Apropriar-se da tradição, citar, aludir, copiar, colar, combater, corrigir, completar, rever, responder a outra obra, roubar as imagens do mundo ou ideias de outros, são condições essenciais ao acto criativo. E nesse processo a angústia criadora vem, não só da expectativa do futuro, mas ainda mais do passado. Surge na relação entre o artista e o já existente, entre o criador e as obras daqueles que o antecederam. É, na célebre expressão cunhada por Harold Bloom, a “angústia da influência”
[1]: ansiedade pela dívida por pagar. Este peso de ser-influenciado difere de autor para autor e podem ser identificados diferentes graus ou modos de realização, mas é inegável a sua permanência ao longo de toda a história da arte.
Ser criador – e não apenas um repetidor - é um modo-de-ser distinto do leitor, espectador ou contemplador. O artista padece da expectativa angustiante de poder ser inundado, de sossobrar e paralisar perante a influência poderosa das grandes obras. Ele não pode deixar-se submergir por elas: é criando que procurará ultrapassar e negar a angústia. Nessa acção criativa a influência transforma-se em forma de
vitalização. Vida que se manifesta na
luta: contra si ou contra outros, contra o tempo ou o espaço, contra a matéria ou o pensamento, contra as leis naturais ou as culturais. É uma batalha que se trava com aquilo que influencia o artista no processo de criação – e isso contra o qual lutamos define-nos. Nesta luta os objectos ou ideias apropriados são, a um tempo, assumidos e destruídos, retomados num outro discurso e
desviados da anterior existência num acréscimo inesperado de sentido.
Cleptopraxia.
A influência não se recebe apenas na relação com as obras criadas pelos antecessores no ofício, mas estende-se a outros “objectos” que rodeiam o artista no mundo – o seu horizonte próprio de possibilidades. Neste sentido, e num movimento instaurado pelas vanguardas do início do século XX, devemos hoje colocar o problema da angústia da influência criativa na relação do artista com o “
n´importe quoi”
[2]. Tudo pode ser
roubado ao quotidiano e introduzido neste outro palco. As obras de Ana Pérez-Quiroga são, nesta linhagem, um elogio da apropriação – e para esta exposição apoderou-se de técnicas, objectos, situações ou ideias que encontrou durante uma residência artística na China, no ano de 2008.
Os objectos, como pensavam os surrealistas e dadaístas, transportam uma intensidade e poder de estranheza que o uso habitual adormeceu. É possível reanimar esta intensidade ao colocá-los em contextos inadequados e inesperados. É o enquadramento, o emolduramento, a sobreposição, a legenda, a palavra, que permite libertar a “coisidade” dos objectos, separados da sua funcionalidade e familiaridade. Mas nas “coisas” que Ana Pérez-Quiroga apresenta, liberta também possibilidades metafóricas e comentários subtis sobre a actividade artística. E se estas obras indiciam a angústia transformadora do processo criativo, aceitam também a influência como um padecer eufórico.
Desvio.
Um texto é sempre escrito (e lido) com referências, citações envergonhadas, apropriações, lugares comuns ou ideias em
segunda-mão – e não são todas as ideias assim? Nada de novo debaixo do sol! Do mesmo modo, as obras de arte remetem para outras, aproveitam ideias alheias, inscrevem-se em movimentos ou assumem filiações, apropriam-se de outras disciplinas e dos progressos técnicos. Ana Pérez-Quiroga parece alegrar-se com isso: palmilhas encontradas num mercado chinês; modelos em madeira de bicicleta para montar; sacos de viagem ou para compras de plástico; anúncios feitos a
stencil que encontrou pelas paredes de Xangai;
tijolos de uma demolição. Apropria-se. Mas essa apropriação implica sempre uma releitura, ao limite, uma interpretação errada. Como se não tivesse percebido o original. Como se. Viu-o de outra forma, interpretou-o “erroneamente”. É nessa falha, nesse
desvio deliberado, que acontece a criação, a transfiguração.
Em
Aprés [Publius Vergilius Maro (70-19 a.C), Dante Alighieri (1265-1321), 西遊記 (Wu Cheng'en) (ca.1500–1582), Santa Teresa de Jesús (1515 -1582), Luís Vaz de Camões (ca. 1524-1580), Miguel de Cervantes Saavedra (1547-1616), Athanasius Kircher (1601/2-1680), François-Marie Arouet Voltaire (1694-1778), Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), Johann Wolfgang von Goethe (1749-1832)] as palmilhas tornam-se incompetentes, mas acompanhadas de textos de viajantes ilustres nas suas línguas originais transformam-se em metáfora da sua deambulação, da própria existência humana como viagem e do encontro com a alteridade que desconhecemos e não compreendemos. O anúncio em
stencil[3], que publicita em mandarim a sua profissão de artista e o seu contacto, coloca-a ao lado daqueles profissionais que assim enchem as paredes da cidade com os números de telefone de canalizadores ou electricistas, de quem precisamos absolutamente em determinadas ocasiões – mas, no entanto, aquilo que ela produz é absolutamente inútil. Por outro lado, essa publicidade revela a estranheza da língua e a dificuldade de comunicação e da tradução – porque uma língua é sempre um código cultural identitário. Na escultura
APQ TRUNKS & BAGS AFRICA AMERICA ASIA EUROPA OCEANIA, o típico saco chinês, agora desproporcionado e desadequado a qualquer função, pode ser metaforicamente interpretado: no propósito comum às palmilhas, a viagem que permitiria; ou abrindo-nos uma via de reflexão sobre a sociedade de consumo; num outro nível, o do ambiente politico chinês, este saco permite pensar no sistema de mercado capitalista em confronto aparentemente harmonioso com o sistema comunista vigente; ou, num outro nível, a transformação perversa desse objecto barato e acessível em obra de arte, que comporta já nas inscrições que a artista lhe faz, a referência às malas que Marc Jacobs mimetizou, a partir destes sacos, para a luxuosa marca Louis Vuiton – defendidas por
copyright. Levanta assim o problema do valor atribuído aos objectos, à propriedade intelectual ou industrial, ao mercado do luxo e da arte. Ana Pérez-Quiroga é, assim, influenciada duplamente, triplamente, multiplamente, euforicamente. E influencia-nos com as possibilidades múltiplas de leitura que nos abre. Como na referência à bicicleta
[4], às que milhões que chineses usam e às que o artista chinês Ai Wei Wei transforma em obra. A distinção clássica entre alta e baixa cultura deixam aqui de fazer sentido, e tudo pode ser recuperado:
n´importe quoi, desde que cumpra os desígnios da artista. Afinal, aquilo que influencia é mediado, trabalhado, recriado.
Chinoiserie.
A
chinoiserie é um estilo das artes decorativas europeias. Surgiu no século XVII e floresceu no XVIII, influenciado pelas viagens, a descoberta, o comércio e a imagem projectada, mais ou menos exótica, do “Oriente”. Isto significa que não é uma arte chinesa, nem feita para os seus. Diz mais da cultura europeia e do seu tempo histórico, do que das culturas asiáticas. Estas obras de Ana Pérez-Quiroga permitirão, sem dúvida, uma análise cultural da cultura chinesa, mas provocam em nós bem mais do que um estudo sócio-antropológico possibilitaria. Fazem-nos sair, como a própria artista saiu, do circulo fechado do pensamento pessoal. Abrem este circuito vicioso à novidade, ao exterior, à influencia criativa.
As peças presentes nesta exposição questionam-nos sobre a noção de posse, de pertença, de propriedade; apresentam o problema do
copyrights e do uso justo; comentam e celebram uma cultura industrial dando um “uso transformativo” aos meios e objectos existentes
, ready-mades, objects trouvés. Elas não duplicam os originais, usam-nos de maneira nova, com outro objectivo, como se a sua finalidade tivesse sido incompreendida. São, assim, uma reflexão sobre a arte, o processo criativo, o seu léxico e gramática. Encontramos nelas uma referência metafórica aberta: a obra tem um
outro e não se fecha em si.
Na praça do Povo em Xangai, de frente para o Museu de Arte Antiga Chinesa, de costas para
o edifício do Governo Municipal, entre instituições com poder, a artista fotografa a sua irónica ascensão
[5]. O plinto é construído por tijolos recolhidos da demolição de uma casa antiga, para aí se construir um edifício novo, à imagem da Nova China. Essa base é um fundamento instável, ela sabe-o. É essa insegurança e precariedade o seu lugar. A obra de Ana Pérez-Quiroga é feita desses restos, de recolha, de apropriação, de atenção ao invisível de tão próximo, ao vulgar, criando um reportório cultural incorrecto, um museu antropológico distorcido, que diz mais sobre a artista, sobre ser artista, sobre a obra de arte, e sobre nós, do que sobre a cultura “roubada”. E não é esse desvio a origem perene da obra de arte?
[1] Harold Bloom,
The anxiety of influence. Oxford: Oxford University Press, 1973. Em grande parte é desta obra que “roubo” as linhas seguintes, confrontando-a com o ensaio-colagem de Jonathan Lethem, “
The ecstasy of influence: a plagiarism” in
Harpers Magazine, Feb 2007.
[2] Aproprio-me aqui de uma expressão que define (por acusação aos artistas ou proposta sua) o objecto da arte, e posteriormente a própria obra, desde o final do século XIX - com as acusações feitas a Courbet e Manet, passando pela proposta artística de Duchamp e as profanações Dadístas ou pela Pop Art: “faire n´importe quoi” é a situação estudada por Thierry de Duve,
Au nom de l´art. Paris: Editions de Minuit, 1989, p.107ss.
[3] made in shanghai
[4] Forever ai weiwei
[5] People's square