"Nada como a obra de arte demonstra com tamanha clareza e pureza a simples durabilidade deste mundo de coisas; nada revela de forma tão espectacular que este mundo feito de coisas é o lar não-mortal de seres mortais."1
"Nothing as the work of art demonstrates with so great clarity and pureness the simple durability of this world of things; nothing discloses of such spectacular form that this world of things is the not-mortal home of mortal beings."1
As obras que constituem este projecto de Ana Pérez-Quiroga propõem-se como uma aproximação ambígua. Em primeiro lugar, porque as molduras, caixas ou vitrinas, ultrapassam o mero dispositivo de exposição, e são um elemento compósito e conceptual do trabalho da artista. A obra de Ana Pérez-Quiroga integra uma prática recolectora e sistemática que resulta, de forma singular, no tratamento do espaço e das obras que produz, reconfigurando relações que se constroem no imaginário colectivo. Em segundo lugar, os objectos, encontrados ou recolhidos, passam a pertencer a um sistema de classificação, e cada vitrina constitui um outro lugar de ligação, onde referentes anteriormente dispersos encontram desdobramentos de sentido em que a linguagem adquire uma presença estruturante. Em terceiro lugar, porque existe uma prática associativa e relacional, para nós subterrânea ou invisível, que se desenvolve como uma estrutura nómada, que procura e percorre um itinerário encontrando nos despojos do nosso quotidiano a sua matéria transformadora, indexados no título desta série, Vrais objets trouvés ou uma reflexão sobre as emoções.
O título é o primeiro passo ao encontro dessa ambiguidade, que aparentemente nos divide, entre o estatuto dos objectos encontrados e uma proposta de reflexão sobre os estados emocionais. De um lado temos o mundo das coisas tangíveis, físicas, e do outro (talvez mesmo a seu lado) o universo das afecções humanas, subjectivas e cuja visibilidade depende das características identitárias de cada indivíduo. A tristeza, a vergonha, a aversão, a ira, o medo, o prazer, o amor ou a surpresa, são zonas de conflito e de tensão interior que emergem como formas de expressão psico-sociais. Os seus traços reconhecíveis são por vezes linhas ténues que se descobrem no olhar, num esgar de um rosto ou em determinado objecto, que denuncia sinais de pertença revelando determinadas características de um ou mais sujeitos. Tomemos como exemplo o Medo que na definição escolhida pela autora, se caracteriza, entre outras, pela ansiedade mas também pelo horror. Da mesma forma, o Prazer pode expressar felicidade mas simultaneamente satisfação sensível ou sensual. Em ambos os exemplos encontramo-nos perante aspectos menos visuais da representação das emoções. Tanto na escolha dos objectos como na selecção das definições das emoções, a autora prossegue o seu percurso há muito traçado e usa o que o mundo lhe põe à disposição. O caminho torna-se mais sinuoso quando observamos os objectos e compreendemos que cada um deles está devidamente identificado, com a hora e o local onde foi encontrado, como por exemplo o Britannica – Book of the year – 1950, encontrado (e escolhido de entre uma pilha de livros) na esquina da Rua Luz Soriano em Lisboa, cerca das cinco horas da tarde do dia 3 de Março de 2007. Mas o itinerário é longo e surpreendente, o Véu, também este encontrado numa igreja de Lisboa, virá a pertencer à categoria dos demais objectos e foi recolhido segundo o mesmo procedimento metodológico. No entanto, este véu foi esquecido na igreja por alguém. Ao contrário dos outros objectos, este não foi depositado no espaço público, porque a sua funcionalidade e necessidade perdeu o valor que o detinha na posse de outro. Pérez-Quiroga atira-nos para uma zona híbrida, porque aquilo que suspeitamos encontrar é aparentemente revelado. As linhas escritas, que nos dão pistas sobre os objectos e as emoções, são bordadas através de um processo industrial. O acto de bordar, atribuído ao género feminino, caseiro, com raízes nobres na decoração de roupas apropriadas a celebrações ou a festejos, transmuta-se em trabalho industrializado, em produção em série. É no uso da linguagem e no seu suporte que acedemos ao processo de trabalho da artista. Se por um lado temos a produção industrial, por outro temos objectos encontrados (objets trouvés) na esteira dos movimentos artísticos do século XX, das práticas dada, do readymade. Aparentemente estamos em presença de um comentário à história da arte, ao valor e estatuto da imagem e do texto, mas Ana Pérez-Quiroga reactiva as nossas expectativas noutra direcção.
O carácter performativo inculcado nos procedimentos accionados através do seu trabalho de pesquisa, indiciam uma consciência do espaço público como uma extensão natural do seu atelier, que permite encontrar o mundo disponível para ser dissecado pelo seu olhar. O seu procedimento denota uma predisposição relacional que recupera, nestas obras, marcas de identidade e uma correspondente alteridade emocional, que não é secundarizada pela deslocação dos objectos do seu lugar de origem. Ana Pérez-Quiroga não está a propôr uma forma de repensar ou criticar qual a validade de um objecto na prática artística, antes produz uma inflexão na forma como nos confrontamos com o objecto artístico, e desta forma questiona-nos sobre o nosso lugar em presença deste e a sua potencialidade enquanto repositório da memória, enquanto Vrais objets trouvés. Neste contexto é a linguagem que assume a mediação entre a obra e o espectador, no sentido em que estrutura o processo de reconhecimento do trabalho de campo efectuado, e é o suporte poético e metafórico que nos propõe um enigma em cada uma das obras expostas. Estes objectos contém um carácter veritativo sobre a sua condição pré-existente à arte, na esfera da acção humana, mas transcendem a categoria documental. De certa forma, estamos em presença de um diálogo que tem como fim último a ultrapassagem da morte como metáfora, com a consciência de que somos mortais e de que os objectos são funcional e materialmente perecíveis. A diferença, está nos indícios que esses objectos convocam e no repto que a autora nos lança convocando a "carne" que se esconde sob as emoções.
1 Hanna Arendt, A Condição Humana, Lisboa, Relógio D'Água, 2001, p. 208.