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Rodrigo Vilhena, "Etant donnés: 1. la chute d’eau 2. le gaz d'éclairage", 2006
"Etant donnés: 1. la chute d'eau 2. le gaz d'éclairage", (1946-66) trabalho póstumo de Duchamp, apresenta ao espectador um possível crime passional. Através de dois orifícios numa porta de madeira, o espectador intrigado vê uma construção tridimensional, como um diorama. A sensação é de estarmos a observar um animal no seu ambiente natural. Este animal é o corpo de uma mulher nua, aparentemente parece ter sido assassinada. Este "ninguém" encontra-se sobre galhos secos, não se vê a sua cara, mas observa-se a sua vagina que parece ter sido rasgada, violada. "Ninguém" segura uma lâmpada incandescente de gás, remetendo-nos para a estátua da liberdade e o seu facho de luz. Ao fundo observamos uma paisagem de uma floresta entre o terreno montanhoso. Um curso de água atravessa este espectáculo mórbido. Será que só podemos alcançar a almejada liberdade, após sermos objecto de um crime sexual violento?

A arte da colagem e da fotomontagem sempre recorreram à apropriação. Esta técnica serve como matéria-prima, a partir da qual se realiza o trabalho artístico. A artista Ana Pérez-Quiroga, através da apropriação e do remake, apodera-se da última obra de Duchamp a fim de a re-utilizar, não pondo em risco a sua subjectividade individual, a sua expressividade ou a sua visão própria de mundo. Muito pelo contrário, o próprio critério de selecção da artista em se apropriar da obra "Etant donnés: 1. la chute d'eau 2. le gaz d'éclairage", ajuda a definir a sua inquietação, a sua inventividade, propondo um outro modo de ver.
A instalação é idêntica à obra do Duchamp, a citação é recolhida para fazer um outro sentido, para ser inserida num outro espaço. Ana Pérez-Quiroga opera uma substituição, a do corpo da mulher por um corpo de uma cadela.

A cadela é um cão fêmea, no uso coloquial, a palavra cadela é empregada frequentemente para insultar, para descrever uma mulher sexualmente promíscua, maliciosa, meretriz, infame, dissoluta, degradante; pode também ser usada no universo masculino, especialmente na prisão, a um homem dominado sexualmente por outro. A palavra cadela resume em si uma série de conotações negativas e a sua substituição é central para a leitura da obra.

Vivemos num tempo de amnésia cultural, contraditório, ambivalente e paradoxal. A decadência, o ecstasy, o hiper-pessimismo, o hiper-optimismo, a virgindade, a orgia, a memória e a amnésia são sinais da nossa contemporaneidade. Somos predadores e parasitas. A cadela é a última fantasia que a cultura se permitiu, na sua condição de comédia humana.

A imagem oferecida é o esgar do nosso futuro, é o nosso vazio, somos nós. Entrada colectiva no bacanal, deslizando sem nobreza e sem paixão. Nós descobrimos nela as nossas insuficiências e os nossos vícios, a nossa vontade vacilante. Esta cadela disponível a todos nós, com os seus diversos mamilos proeminentes a descoberto, é uma musa, ela eleva ao céu o facho do conhecimento, da iluminação. O deleite que ela nos inspira, a sua posse de exaustão depois do deboche, é o prazer de nós próprios que aqui jaz prostrado. A sua pata traseira esconde o seu sexo, bem como a cauda esconde o seu ânus, como se de uma virgem se tratasse. Este mundo idílico já não entra no campo das nossas emoções, nem é perpetuado pela nossa memória, repousamos numa felicidade sem qualidade, num frémito sem adjectivo. O engodo, a armadilha, a cadela é a metáfora da arte contemporânea.

Ana Peréz-Quiroga ao realizar a substituição da mulher pela cadela, remete-nos para a paródia, talvez o mundo da paródia de Georges Bataille em L'anus Solaire, (1931): "Todos estamos cientes que a vida é paródia e que falta uma interpretação. Assim a ligação é a paródia do ouro. O ar é a paródia da água. O cérebro é a paródia do equador. O coito é a paródia do crime."


Lisboa, Novembro 2006
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