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Ana Pérez-Quiroga
Os Pobrezinhos in Revista CAIS
Ana Pérez-Quiroga, 2007




"A edição de Maio da revista CAIS reúne 16 obras inspiradas e resultantes da interacção entre 16 artistas consagrados e os utilizadores de várias instituições sociais, pessoas e grupos que se encontram em situação de risco ou exclusão social.

Entre os meses de Março e Abril, os artistas foram convidados a visitar algumas instituições sociais em Lisboa, a fim de conhecerem o trabalho desenvolvido no terreno, interagirem com a população-alvo e, em simultâneo, estimularem a sua criatividade e participação no projecto.

Foi com o objectivo de permitir o envolvimento desta população num projecto artístico e social, que o Grupo 21 ½ (Plataforma Independente de Transgressão Artística, liderado por João Mourão, Paulo Romão Brás e Sandro Resende) idealizou e desafiou a Associação CAIS a produzir uma edição da revista dedicada ao tema "Os Descartáveis". O projecto reúne 16 obras e textos de críticos de arte e ensaístas, desafiados a interpretar o tema e as obras.

É este o projecto que preenche a secção Revelação da 2ª edição (Maio) do novo formato editorial da Revista CAIS. A CAIS adoptou no mês passado um perfil editorial voltado para a reflexão, a informação e a descoberta de novos talentos. Com a colaboração de importantes figuras do mundo académico, político, cultural e empresarial, a CAIS dedica-se à síntese da actualidade, à cidadania empresarial, à cultura, ao entretenimento, a concursos de contos, fotografia e cartoon, à sociedade civil e a ensaios em áreas que vão desde a Política e a Economia, à Justiça e Filosofia.


Os artistas

Sandra Cinto, João Penalva, Nuno Ramalho, Paula Roush, Manuel Santos Maia, Ana Pérez-Quiroga, Sandro Resende, Paulo Romão Brás, Maria Lusitano, Duarte Amaral Netto, Valter Vinagre, António Júlio Duarte, Miguel Palma, Francisco Queirós, Susanne Themiltz, Xana


Os autores dos textos

João Mourão, João Pinharanda, Manuela Sanches

Tema - Os Descartáveis:

O esvaziamento da textura humana dos valores que a compõem, como resultado da utilização mercantilista da pessoa humana, entendida como meio e nunca como um fim, faz depender a importância do ser humano do ganho que este é capaz de produzir, tornando-se sempre descartável ou dispensável, cada vez que a criação de riqueza deixar de se verificar com ele. Por outro lado, a valorização do que existe com base na qualidade do retorno que este nos possibilita, tornou as transacções mundiais num materialista e desrespeitador "usa-e-deita-fora".

Descartáveis

TXT | João Mourão | Comissário Grupo 21 ½
Diariamente vejo pessoas a dormirem na minha rua. Acompanho-as nas suas habitações, nómadas e precárias. Na sua mansidão e exaltação. Muito para além dos porquês, das culpabilizações aos organismos governamentais e camarários, sempre me interessou quem anda no terreno, quem actua para tentar solucionar causas. Quem age.

A Associação CAIS sempre me pareceu um projecto válido e com provas dadas de casos de sucesso. A edição de um número da revista, feito também por artistas plásticos, pareceu-nos a nós – Plataforma de Transgressão artística 21 ½ –, uma boa forma de envolver agentes culturais nesta outra realidade. Projecto que a CAIS aceitou de bom grado.

Partimos da ideia de descartável, de uma sociedade mercantilista, esvaziada de alguns valores e em que a importância do ser humano depende, em muito, do que produz, vivendo este com o fantasma de que a qualquer momento poderá ser afastado, dispensado, descartado. Limitados no suporte e na temática, convidámos 16 artistas a contribuírem com um trabalho que ocupasse uma página dupla da revista.

Os trabalhos apresentados resultam do olhar/análise/interacção dos artistas com a população alvo da Associação CAIS – pessoas e grupos em situação de risco ou exclusão social, em sentido lato.

As imagens fazem-se acompanhar por textos de críticos, curadores, historiadores e antropólogos, que reflectiram também sobre o tema e que com as suas dúvidas nos imprimem perguntas que gostaríamos de ver respondidas.

O projecto de colaboração na co-edição da Revista CAIS teve por objectivo cruzar linguagens sem tentativas de esgotar assuntos. Não olhámos apenas para o percurso de cada artista e para a sua relação directa com a temática da exclusão social, interessou-nos colocar também outros artistas a trabalharem o assunto.

A ideia de fronteira (e não apenas as territoriais) marcou a escolha de alguns artistas e trabalhos. A globalização de ambos os mundos, o artístico e o da exclusão social, e o seu possível enlace em alguns casos, alertou-nos para a necessidade de inserir no projecto, artistas que não residam apenas em Portugal e que pudessem acrescentar outros pontos de vista.

Se Sandra Cinto nos oferece a sua visão e desejos para São Paulo, apresentando um desenho/poema que parte de uma intervenção de arte pública, que realizou nessa cidade, João Penalva propõe um instante sobre o Oriente, onde o que parecem habitações precárias (casas de sem-abrigo?) continuam a ter os sapatos à porta. Hábitos culturais e sociais que são também o ponto de partida da intervenção pública, "Os Outros", realizada por Nuno Ramalho, numa estação de São Francisco, que questiona ou sublinha os princípios de regulação e auto disciplina dos utilizadores deste meio de transporte. Paula Roush documenta a sua intervenção, "Casas Temporárias", desenvolvida em Londres, em colaboração com quatro ONG feministas que albergam temporariamente mulheres sem-abrigo, alertando para os direitos à habitação ou à reclamação do espaço público.

A questão da memória (individual e colectiva) é referência nos trabalhos de Manuel Santos Maia, Ana Perez Quiroga, Sandro Resende, Paulo Romão Brás, Maria Lusitano, Duarte Amaral Netto, Valter Vinagre e António Júlio Duarte. Santos Maia aplica a sua Série Allheava para identificar, num documento oficial, um "retornado" que vive na rua em Portugal, mas que psicologicamente continua a viver em Moçambique. Quiroga recorre aos seus livros da escola primária e aviva-nos a memória com as histórias condescendentes, aprendidas em pleno Estado Novo, sobre os “Pobrezinhos”. Resende juntou quatro utentes do Centro CAIS de Lisboa e instalou-os num Palácio, onde pousaram como uma aristocrática família e representaram papéis que lhe são muitas vezes negados. Romão Brás traça um mapa, denso, sinuoso e impossível, onde se movem figuras invisíveis deambulando sem destino. Um mapa que deixou de ser uma representação da cidade, mas a cidade mental de alguém. Maria Lusitano alerta, inscrevendo na Revista o seu manifesto, contra a celebração da destruição. Utiliza para tal um dos seus desenhos de catástrofes naturais e as palavras de Vindeirinho. Netto encontrou, na quietude da Natureza, um colchão velho e desintegrado. Simbolicamente, regista a dualidade vida/morte numa metáfora da ruína e do abandono. A envolvência de Vinagre e Duarte obteve-se directamente no terreno (relembro que são também fotojornalistas). Vinagre convidou uma utente da CAIS a escrever a história para as suas imagens, Duarte congelou momentos numa das visitas efectuadas aos refúgios dos sem-abrigo, despojando-os de rostos mas garantindo-lhes sonhos. Há ainda trabalhos que se inscrevem em protocolos mais humorísticos e irónicos, como os apresentados por Miguel Palma, Francisco Queirós, Susanne Themiltz e Xana, embora não percam nunca a sua acutilante crítica social. Palma confere a um tronco de árvore novas funcionalidades e cria uma situação de piquenique urbano que ironiza com a utilização do título, em língua francesa (Dejeuner sur l'arbre), conferindo-lhe ares de grande banquete. Queirós apresenta-nos uma sereia negra, rodeada de peixes laranja. Todos fora de água. Combatendo ideias pré concebidas, Queirós utiliza ainda, como modelo, um transgender, que ultrapassa qualquer imagem infantil que tenhamos. Esta imagem, que poderia não ter qualquer carácter político noutro contexto, ganha nesta revista um novo sentido, pois reaviva o caso Gisberta ocorrido no Porto, em 2006. Themiltz cria um cenário, uma casa para seres nómadas e imaginários, uma casa-chinelo(?) que poderíamos transportar facilmente. Terminamos propositadamente com Xana que se continua a servir das cores, das modulações e padronizações. Ao utilizar a mesma "figura", nas duas imagens, mas alterando lhe a cor e a legenda, cria duas leituras completamente inversas. Garante, para imagem final, o FELIZ como que desejando a felicidade ou a possibilidade dela. Achamos que era uma óptima forma de fechar a rubrica, Revelação...

O que pode a Arte fazer pelos deserdados da terra?

TXT | João Pinharanda | Crítico de Arte

Perguntas
Para que serve uma pilha de jornais ou um fardo de embalagens de cartão? Para que serve uma braçada de roupa usada ou um molho de palha e feno? O que se pode fazer com um monte de tábuas recuperadas de uma obra ou com umas chapas de zinco ondulado?

Respostas que são Perguntas
Obras de Arte? Ou abrigos tão urgentes como precários? Mercadorias artísticas transaccionáveis e transformáveis em metadiscurso, em reconhecimento social, em dinheiro? Ou abrigos transformáveis apenas em prisão, em desprezo social, em doença, em mais pobreza? Abrigos constantemente refeitos contra o clima e o espaço e a cidade? Ou Obras de Arte tão fúteis como efémeras na sua glória?
Estas perguntas (e estas respostas que continuam a ser perguntas) não pretendem ilustrar, da minha parte, nem uma dimensão moralista nem uma visão céptica ou cínica do mundo. Limitam-se a registar modalidades de vidas diversas, vividas por personagens diversas, oferecidas como espectáculo a personagens diversas.

Evidências Arte e Pobreza mostram-se como faces possíveis de uma realidade de muito mais faces e podem surgir ao mesmo tempo e no mesmo espaço da nossa acção e da nossa reflexão.
Se com jornais, cartões, roupas velhas, palha, tábuas ou zincos se compõem esculturas, instalações ou integram pinturas podemos supor que quem tais materiais escolhe para o seu trabalho conduz a sua criatividade para a afirmação de uma consciência crítica que dirige contra as condições de um mundo que urge transformar. Essa posição cívica é, evidentemente, como qualquer acção artística (mas também política ou outra), alcançada por uma estetização do real. Por esse motivo referi a possibilidade de "real" e "arte" se oferecerem em espectáculo a personagens diversas: a arte tem um circuito onde os seus elementos apenas de modo indirecto coexistem com a realidade; a realidade poderá fornecer modelos à arte, esses modelos podem ser os da exclusão mas o público tenderá a esquecer (ou esconder/secundarizar) a genealogia que sustenta tais obras. Os malfeitores de Caravaggio, os pedintes de Ribera, os condenados de Goya, os loucos de Géricault, as putas de Degas, os índios de Orozco… desperta(ra)m algumas consciências, muda(ra)m alguns comportamentos mas, muito frequente e rapidamente, deixa(ra)m de ser panfletos cívicos e morais para sustentarem um dos mais eficazes, lucrativos e poderosos sistemas económicos da história humana, o da arte.

Perguntas sem Resposta Se àqueles que nada têm, nada tem sido dado; se àqueles que tudo sofreram, mais sofrimento tem sido infligido; se àqueles que esqueceram o amor, ninguém tem ensinado a amar; e se apenas têm sido amaldiçoados aqueles que nos mostram ou recordam a sua miséria (por que com isso nos ofendem e ameaçam) o que pode a Arte fazer pelos deserdados da terra?


O GRUPO 21 ½

O Grupo 21 ½: Plataforma Independente de Transgressão Artística, liderado por João Mourão, Paulo Romão Brás e Sandro Resende, é experiente em produção e curadoria de exposições similares, principalmente na realização de projectos de arte urbana e de projectos em locais pouco convencionais e fora do circuito galerístico.

Projectos recentes: Manicómio Dr. Heribaldo Raposo – Museu da Cidade, Pavilhão Preto, Lisboa - Maio de 2006; Go Between – Kleines Kabinett, Lisboa - Novembro 2006; Go IN BETWEEN – kLEINES KABINETT, Lisboa – Fevereiro de 2007; Stigmata – Sala do Veado, Museu Nacional de História Natural, Lisboa – Março de 2007; Objecto Simulacro – Pavilhão 24, Hospital Júlio de Matos, Lisboa – Março de 2007. "